terça-feira, 21 de agosto de 2007

A LEI DA BÍBLIA NA SELVA

No oeste do Amazonas, os banivas rezam pela cartilha evangélica e decoram as aldeias com despojamento zen

Pedro Marinelli

Está para sair do papel a demarcação da mais remota reserva indígena da Amazônia, localizada na região conhecida como Cabeça de Cachorro, na fronteira do Brasil com a Colômbia. O nome Cabeça de Cachorro é decorrência óbvia dos contornos da área, que tem a forma de um cão de boca aberta. Nessa região longínqua, o único meio de transporte é o barco e a forma de sobrevivência é o acordo entre o ser humano e a floresta. Navega-se um mínimo de duas semanas no Alto Rio Negro para viajar da cidade mais próxima até lá. Trinta e cinco cachoeiras precisam ser contornadas na viagem mas a aventura vale a pena para quem acha compensador observar grupos indígenas muito diferentes daquela imagem tradicional do índio sujo e beberrão que vive esmolando nas esquinas das grandes cidades amazônicas. Na região vivem cerca de 30.000 índios, que aguardam para até o fim do ano a oficialização da posse de sua terra pelo governo federal (veja quadro). Na porção mais remota da mata, às margens do Rio Içana, vivem as tribos baniva e curipaco, duas das mais interessantes comunidades de toda aquela área. Essas duas nações reúnem cinqüenta aldeias, habitadas por índios que têm título de eleitor, sabem ler e escrever e adoram cantar o Hino Nacional, sem ter, no entanto, perdido a essência de sua herança indígena.

A convivência aparentemente harmônica do mundo novo com o antigo é mais espantosa quando se sabe que foi Jesus Cristo o Deus dos brancos , outrora uma ameaça para a cultura indígena, que acabou garantindo sua sobrevivência. Eis uma novidade capaz de abalar muitas das teorias antropológicas, mais especificamente a que via o Evangelho como um vilão responsável pela aculturação indígena. Por mais estranhas que possam parecer em português, aos olhos dos banivas as palavras do profeta Isaías são tão cristalinas quanto as águas do Içana. Por lá, elas são a lei: "Nocaweñaweotsa picuento ni nodietaro pia Dios isso". Tradução: "Porque eu sou Deus e não há outro". Levada nos anos 40 ao Içana por missões evangélicas americanas, a Bíblia converteu-se num poderoso veículo de coesão cultural.
Antes que os missionários aportassem no Rio Içana nos anos 40 e, duas décadas antes, os padres salesianos se instalassem na bacia do Rio Uaupés, também na região, as tribos estavam entregues à exploração dos brancos. "Naquela época, os índios que não conseguiam esconder-se em igarapés eram escravizados por comerciantes e fazendeiros, que usavam a sua mão-de-obra em troca de roupa e alimentos", diz o antropólogo Aloísio Cabalzar, do Instituto Socioambiental, o ISA. O ISA é a mais ativa ONG trabalhando com os índios do Alto Rio Negro.
Proteção natural Graças à distância e às quedas-d'água, que tornam a navegação mais complicada, a região ficou relativamente livre de algumas pragas que têm assolado outras áreas da Amazônia. Por ali, são raríssimos os garimpos e só se desmata para a construção de habitações. A única invasão preocupante de garimpeiros ocorreu no início da década, quando os forasteiros apareceram bateando o rio atrás do ouro de aluvião. Mas depois que o metal acabou eles foram embora e hoje não apresentam ameaça ao lugar. Distantes no tempo e no espaço, hoje os habitantes do Içana são um povo único no mapa. Paradoxalmente, foi ao assimilar a religião dos brancos que eles conquistaram a consciência de sua etnia e, mais do que isso, o desejo de preservar suas próprias tradições.

Para quem chega às aldeias, o que salta à vista é o asseio dos índios e o alto grau de organização e boa vontade no cumprimento de tarefas produtivas. Elegantes e festeiros, também adoram conviver com as aldeias vizinhas. Quando o dia começa às margens do Içana, o sol ainda está para se levantar, lá pelas 4 da manhã. Depois de deixar suas redes, os índios se reúnem no salão comunitário da aldeia. Homens de um lado, mulheres e crianças do outro, todos entoam suas preces. A divisão espacial dessas reuniões, separando os sexos, obedece à tradição indígena. Contritas, as mulheres têm o hábito de tapar o rosto com as mãos enquanto rezam. Na ausência de um pastor hoje existem apenas seis deles em todo o Içana , as escrituras são lidas no idioma local pelo ancião, um velho índio a quem foi atribuído esse poder. Na mesma cerimônia, os índios comem o xibé, um mingau frio à base de mandioca. De novo, a separação por sexos: primeiro comem os homens e depois as mulheres.



Chega então a hora de as tarefas do dia serem definidas pelo chefe da tribo. Enquanto as mulheres se ocupam do artesanato e da cozinha, os homens são incumbidos de plantar, pescar e caçar. Sendo um rio antigo, com pouco sedimento, e portanto muito menos barrento que o Amazonas, o Içana não tem uma grande variedade de peixes. Por isso, a captura de traíras, surubins e tucunarés é sempre motivo de festa na aldeia. Sem dispor de geladeiras, os índios têm um método próprio para conservar seus peixes, defumando-os ou, como se diz por lá, moqueando-os.

Olho peculiar Na roça, a mandioca-brava é o alimento mais cultivado. Perto das lavouras, crescem árvores frutíferas como açaí, caju e pupunha. Como o solo da região é pobre em nutrientes, sendo ácido e arenoso, as lavouras costumam durar cerca de três anos. Depois desse período os índios precisam abandonar os roçados para plantar em outro local, ainda virgem. A pobreza da terra também faz com que a caça seja modesta. De vez em quando, capturam-se roedores, como pacas e capivaras. Parte daquilo que os índios produzem e não comem é utilizada como produtos de venda e troca por gêneros em falta nas tribos. De fora, os índios vão buscar sal, fósforos e anzóis para pescar.

Refinadíssimos, os banivas e os curipacos têm um olho peculiar para construir suas casas, ferramentas e até adereços. Os salões comunitários de suas aldeias, onde acontecem as assembléias religiosas, por exemplo, são feitos com materiais paupérrimos: argila, pau-a-pique e folhas de palmeiras. Ainda assim, guardam alto grau de sofisticação, notado na composição geométrica dos bancos, feitos com toscas toras de madeira, e na forma como esses móveis são dispostos no espaço de terra batida. Na economia de materiais e cores e na composição geométrica, o ambiente desses templos lembra um pouco o estilo despojado dos ambientes japoneses tradicionais. É espantoso ainda o gosto na confecção de bijuterias femininas. Com reles argolas extraídas de latinhas de alumínio de refrigerantes, compradas na Colômbia, as moças das aldeias fazem pulseiras simplíssimas e bonitas.

Na hora da reza, as mulheres e crianças sentam-se longe dos homens. Contritas, elas oram com a mão no rosto. Abaixo, os bancos do salão da aldeia, com a elegância de um mosteiro zen-budista


Essas pulseiras e roupas novas são usadas pelas moças nas festas de integração promovidas entre as várias aldeias, para as quais os índios convidam seus vizinhos. Nos dias que antecedem as festas, eles se põem a preparar a casa para as visitas. As habitações, que mesmo modestas são asseadíssimas, passam então por uma faxina extra. E assim os índios cumprem seu ritual da visita, um dos que permanecem encravados em sua cultura milenar. Aos olhos dos antropólogos, os banivas e os curipacos ainda guardam seus mistérios. Descendentes dos índios aruaque, foram no passado vizinhos dos tupis e caraíbas. De acordo com o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que viveu no Brasil e se interessou muito particularmente pelos índios, os aruaques ou seja, o tronco dos banivas e dos curipacos são um grupo "antigo e sofisticado". Num passado distante, formavam o grosso da população antilhana e chegaram a habitar até a região da Flórida. Já no século XVI estavam concentrados nas Guianas e no Amazonas. Hoje, protegidos pela natureza e pela religião, eles parecem prontos para sobreviver, como índios e cidadãos.

Texto de Angela Pimenta
Fonte Revista Veja (Editora Abril)
(O grifado é nosso)

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