Um homem branco de meia idade sentado à esquerda, barba por fazer, os olhos completamente marejados, perguntava: “Por que você atirou em minha mulher na porta de nossa casa?” O assassino, um homem negro de aspecto franzino, impassível, olhos também marejados, mexia os lábios sem conseguir responder.
Um outro homem negro virou-se e de forma pausada e contida, indagou: “Por que você o agrediu? Ele voltava do trabalho para nossa família. Você não sentiu nada ao acertar-lhe a cabeça até expor-lhe o cérebro?” A esta altura o homem não agüentou mais. Colocou o rosto entre as mãos e soluçou descontrolado. O assassino, de cabeça baixa, mirava o chão, enquanto as lágrimas escorriam e pingavam pela ponta do nariz.
Estes eventos reais aconteceram às centenas durante o processo de redemocratização da África do Sul no governo Mandela. Este, após 27 anos de cárcere, foi solto em 1991 e tornou-se presidente do país nas primeiras eleições multirraciais (1994 – 1997). Havia enormes feridas. O mundo olhava apreensivo, pois nestas circunstâncias o sentimento de vingança disfarçado de justiça, clama desesperado. A esquerda política pedia a radicalização do processo e a condenação de todos os brancos agentes do apartheid instalado desde 1948. A direita do novo governo, majoritariamente formada pelos brancos outrora opressores, pedia a anistia pura e simples, o esquecimento das atrocidades à la brasileira e argentina, por exemplo.
Um grande impasse estava formado. Entretanto, tendo à frente do novo governo um homem calejado e experimentado na dor, surgiu uma terceira via que ficou conhecida como Tribunal da Verdade e da Reconciliação que na ocasião foi presidido pelo bispo Desmond Tutu, prêmio Nobel da paz. O tribunal poderia anistiar todos aqueles que se apresentassem e admitissem suas culpas e que os crimes praticados tivessem motivação política. Foram acolhidas vítimas e algozes num mesmo espaço. As primeiras para confrontarem com sua história e sua dor aqueles que lhe causaram o mal. Os segundos para serem libertos pela confissão.
Os gregos antigos diziam que o esquecimento é a pior forma de punição. A crueldade, neste caso, está manifesta da maneira mais terrível porque é à vítima que é negada a justiça. O esquecer sem confissão não limpa a sujeira, não aplaca a dor da humilhação. Não há valor maior que suplante este ato, nem mesmo uma suposta paz entre os deflagrados. Não se pode construir relações saudáveis esquecendo o mal praticado. O mal deve sempre ser exposto, por mais doloroso que seja. A confissão humaniza o carrasco e torna-o passível de ser perdoado sem prejuízo, sempre que couber, da reparação.
Uma frase de Mandela tornou-se antológica: “Sem reconciliação não há futuro.” Mas como se viu no breve relato anterior, não haverá espaço possível para reconciliação sem a confissão do culpado. A vítima pode até perdoar sem que lhe tenha sido pedido desculpas ou perdão. É mais comum aqueles que sofrem serem magnânimos que os que impingem o sofrimento serem humildes até para aceitar que lhe perdoem, porque estão bêbados de arrogância e medo. Os sofredores perceberam sua própria dimensão, coisa que a dor é capaz de fazer. Tiveram abalados os alicerces, foram tocados pela força e viram sua fragilidade.
Afirmei que o malévolo sente medo. Parece não condizer com suas atitudes de causar o mal, mas a Bíblia já afirmava isso muito antes dos psicólogos. Diz João, o apóstolo do amor: “No amor não existe medo; pelo contrário, o amor perfeito lança fora o medo, porque o medo supõe castigo. Por conseguinte, quem sente medo ainda não está realizado no amor.” (1 Jo 4.18 – EP)
A confissão e o perdão são irmãs gêmeas de um mesmo processo que chamamos de reconciliação. São pedagógicas, terapêuticas e libertadoras. Aquele que confessa, livra-se do medo e da culpa, recupera a dignidade. Aqui uma ligeira digressão. A palavra culpa ganhou uma conotação distorcida neste mundo secularizado. Acusam o cristianismo de infundir sentimento de culpa nas pessoas. A pessoa de bem com a vida, o forte, o vencedor, é aquela que bate no peito e diz: “Não me arrependo de nada”. O tolo é auto-suficiente, nunca deve nada ninguém. Numa maioria de cristãos nominais, pessoas que mal sabem fazer o sinal da cruz ou repetir o “Pai nosso” sem errar, o cristianismo tem influência meramente cultural. A culpa é um sentimento natural quando se transgride a lei moral instalada dentro de cada um de nós. Está presente nos homens desde quando lhe chamávamos pré-históricos.
O que perdoa recebe o livramento da raiva ou ódio carregado em suas entranhas como um empachamento emocional. Livra-o do sentimento de vingança que, como uma ferrugem, oxida a alma, enfraquece a moral, adoece o ânimo. Aquele que perdoa percebe que não há mais nada à espreita como um animal de tocaia para devorar-lhe a vida. Os espaços se alargam como nuvens de chumbo invadidas pelo sol. Não por coincidência o processo de reconciliação naquele país estilhaçado tenha sido conduzido por um homem que crê e pratica os valores do Evangelho, em cujo centro está o perdão. Perdão de Deus para os homens na pessoa de Jesus.
Confessar e perdoar são muito mais que um ato ritual cartártico é condição fundamental de saúde mental, física e espiritual. Não é, no dizer psicológico, somente elaboração de feridas ou traumas, é, antes de tudo, reproduzir de forma, mesmo que tímida, o ato de Deus. Aproxima-nos dEle como parte daquilo que Ele é. Pede coragem, desprendimento, humilde atitude de reconhecer que também somos falhos. A confissão aplaca a ira e a dor. Lembrando que esta é sempre o primeiro passo para que se faça justiça. O perdão, diz a Bíblia, é como amontoar brasas vivas sobre a cabeça do culpado (Rm 12.20).
O esquecimento destas práticas como parte daquilo que nos torna humanos, a relativização destes fundamentos, sua abstração, em nome de valores que representam a competitividade, a força, a suprema liberdade humana (lembrar Nietzche), não torna os seres humanos mais fortes e vencedores, torna-os robotizados, insensíveis, gera apenas uma sociedade injusta, amante da violência e sem rumo. Do mesmo modo, cultivar o perdão e confissão como leis da vida, não enfraquece a pessoa, liberta-a para ser o que quiser.
Autor - Eudes Oliveira de Alencar
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